A adoção do modelo de split payment — pelo qual o valor dos tributos é retido diretamente pelos intermediadores financeiros no momento da liquidação da operação comercial — passou a ocupar posição de destaque no cenário tributário brasileiro com a edição da Lei Complementar nº 214/2025.
A promessa de simplificação do sistema e redução da sonegação fiscal impulsiona o discurso institucional em defesa do mecanismo. Contudo, a forma como se pretende implementá-lo no país traz consigo uma série de tensões constitucionais, especialmente no que diz respeito à autonomia patrimonial do contribuinte, ao direito de propriedade e à vedação ao confisco, bem como à deturpação do princípio da cooperação, recentemente positivado pela Emenda Constitucional nº 132/2023.
O modelo tributário nacional tem se mostrado historicamente disfuncional, marcado por elevada litigiosidade e complexidade normativa. A fragmentação das bases tributáveis entre diversos entes federativos, aliada à multiplicidade de tributos incidentes sobre as mesmas operações, tornou o sistema um dos mais onerosos do mundo sob a ótica do compliance.
Nesse contexto, a reforma introduzida pela EC 132/2023 busca reorganizar o sistema com base em princípios como simplificação e integração federativa, sendo o split payment apresentado como ferramenta para viabilizar esses objetivos. A proposta prevê que instituições de pagamento eletrônico retenham e repassem diretamente ao Fisco os valores devidos a título de IBS e CBS, creditando ao contribuinte apenas o montante líquido da operação.
Embora a experiência internacional reconheça algum grau de eficácia do split payment na mitigação de fraudes fiscais — como indicam os estudos da Comissão Europeia e os modelos adotados na Itália e Polônia —, há um traço comum entre essas experiências bem-sucedidas: todas preveem limitações quanto ao alcance, voluntariedade de adesão ou mecanismos de restituição céleres e eficazes. A proposta brasileira, ao contrário, é marcada por sua abrangência quase irrestrita e caráter impositivo, estendendo-se a três modalidades distintas e abarcando operações eletrônicas e não eletrônicas, o que representa uma ruptura com a lógica ordinária de arrecadação.
O principal impacto do modelo proposto reside na extinção da liberdade do contribuinte em gerir integralmente os recursos financeiros decorrentes de sua atividade econômica. Em vez de recolher o tributo após o ingresso da receita em seu patrimônio, o valor correspondente ao IBS e à CBS é subtraído previamente, transferindo ao Estado uma prerrogativa de apropriação automática que colide frontalmente com o direito constitucional à propriedade. Tal medida, ao ser adotada como regra geral, suprime a possibilidade de o contribuinte exercer sua autonomia patrimonial, ainda que para fins legítimos, como priorizar obrigações privadas ou depositar judicialmente valores sub judice.
Além disso, a suposta neutralidade do mecanismo em relação à posição econômica do contribuinte — sob o argumento de que o encargo tributário é integralmente transferido ao consumidor final — desconsidera as complexidades do mercado. A elasticidade da demanda, a concorrência acirrada e a inserção em cadeias globais de produção tornam o repasse pleno do tributo uma abstração distante da realidade empresarial. Na prática, muitos contribuintes arcam com parte do custo tributário, o que afeta suas margens de lucro e capacidade de investimento, especialmente em cenários de crise econômica.
A gravidade do modelo não está apenas no mecanismo da retenção automática em si, mas na nova lógica de exigência do tributo. Com a Lei Complementar nº 214/2025, o tributo torna-se exigível no fornecimento do bem ou serviço, ou mesmo no pagamento antecipado, o que ocorrer primeiro. Como se sabe, em casos de inadimplência, cada vez mais comuns em um ambiente de crise econômica, o contribuinte é compelido a recolher o tributo sem ter recebido qualquer contraprestação do seu cliente. O Fisco, por sua vez, assegura-se o recebimento automático da receita, enquanto o contribuinte — paradoxalmente apontado como mero repassador do ônus tributário — é quem suporta, na prática, a perda financeira. O Estado, nesse cenário, ignora a função social da empresa e sua condição de agente econômico fundamental à própria arrecadação, priorizando um modelo de arrecadação descolado da realidade negocial.
Tributação precisa observar limites impostos pelo Estado de Direito
Há, ainda, um grave problema ético subjacente a essa lógica. Como pode o Estado exigir do contribuinte a antecipação de valores se ele próprio não honra seus compromissos financeiros com a mesma rigidez? A moralidade administrativa, princípio basilar da atuação estatal, é frontalmente violada quando se pretende exigir pagamento antecipado de tributos enquanto precatórios permanecem pendentes por anos, sem previsão de quitação. Se a inadimplência é o mal a ser combatido, a resposta deveria ser simétrica: que o pagamento do contribuinte ao Estado também se sujeite a um sistema de fracionamento proporcional — um split da arrecadação pública — sempre que houver pendências reconhecidas e não adimplidas pela Fazenda. O desequilíbrio de forças, nesse caso, transforma a relação jurídico-tributária em uma via de mão única, onde o contribuinte é constrangido a pagar, mesmo sem receber, e o Estado se permite dever, sem consequências imediatas.
Não menos preocupante é a retórica da “cooperação” que embasa o modelo. O que se verifica, na verdade, é a imposição unilateral de deveres ao contribuinte, sem qualquer contraprestação do Estado em termos de confiança, flexibilidade ou segurança jurídica. A inversão da lógica arrecadatória revela um sistema pautado por presunção de desconfiança, no qual o Estado delega à iniciativa privada a responsabilidade pela arrecadação, mas conserva para si a apropriação prioritária dos recursos. A ausência de mecanismos efetivos e tempestivos de restituição — como bem evidenciado na histórica demora do Fisco brasileiro em devolver valores pagos indevidamente, a exemplo do ICMS-ST — agrava o cenário, elevando o risco de que a retenção se converta, na prática, em confisco.
A constitucionalidade do split payment não pode ser analisada apenas sob a ótica da arrecadação eficiente. A tributação, por mais legítima que seja, deve observar os limites impostos pelo Estado democrático de Direito. A apropriação de recursos antes mesmo de seu ingresso no patrimônio do contribuinte fere o núcleo do direito de propriedade, desvirtua o conceito de cooperação tributária e compromete a liberdade e isonomia entre os agentes econômicos.
Para que o mecanismo seja compatível com a Constituição, sua adoção deve observar critérios de seletividade, proporcionalidade e razoabilidade. A aplicação deve ser restrita a setores de alto risco fiscal, com restituições automáticas e eficazes, e sua implementação deve ser precedida de diálogo institucional com os contribuintes. A generalização indiscriminada do split payment, como prevista, representa não apenas uma ameaça à liberdade econômica, mas também um perigoso precedente de erosão de garantias constitucionais sob o pretexto da eficiência fiscal.
Fonte: Conjur
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